A Revolução da Esperança
Há esta certeza que faz falta proclamar: Manuel Fúria é um subversivo.
Melhor ainda: um subversivo com uma missão. Acredita e pratica o que
louva - valores e actos que, mais do que anacrónicos, são mal vistos pelo
espírito deste tempo. Utiliza sem medo palavras como «pátria», «amor»,
caridade», «coração», «bondade», «rei», «fé», «rapariga», «noiva», «Cristo», «contemplação», «mistério», «alma». Para ele, tudo se poderia resumir num único vocábulo
indizível que tem urgência de partilhar. E essa urgência é a razão de ser da sua arte e da
extrema necessidade de fazer.
«Quero ver Lisboa a arder», anuncia ele no início da nova aventura-manifesto que
é este disco, Manuel Fúria contempla os lírios do campo. A referência bíblica, para
além de assumida, assalta-nos por uma estranha beleza proselitista, apenas porque
pressentimos que ele crê sinceramente e isso é tão raro. O que seduz de imediato na arte
e na personalidade do Manuel Fúria (e aqui chegados, permiti que o que assina estas
linhas se intrometa ainda mais pessoalmente nesta conversa e confesse a sua amizade) é
que tanto numa como noutra a verdade não se sobrepõe à sinceridade: valem o mesmo,
e são indissociáveis. Outros criadores ou interpretes são genuinamente sinceros no
momento em que transmitem sentimentos ou intenções, para depois os abandonarem;
Fúria é verdadeiro, de uma forma absolutamente sincera.
Assim, rodeado de cúmplices de excelência que não por acaso se intitulam de
Náufragos (na eterna espera, numa eterna deriva, numa angustiante liberdade),
Manuel Fúria canta aquilo em que acredita, lamenta o que se perdeu mas reclama a
possibilidade da esperança. O que esta colecção de cantigas sugere é uma visão de
um mundo límpido e espiritual, onde o essencial é possível, e que esse mundo poderia
começar em Portugal. Infelizmente, e como chegou a dizer numa entrevista, « Portugal
ainda não é».Esta ontologia de Portugal teria assim de partir de um reino de amor e de
festa. Se existem tentações - a cidade como Babilónia é assumida logo em Estandarte
e lembrou-me uma das minhas passagens bíblicas preferidas:"Não deixes errar os
olhos pelas ruas da cidade nem vagueies por seus lugares solitários" (Sir, 9, 7) - todas
serão vencidas pelo Amor e pela Festa (Que Haja Festa Não Sei Onde). Desenganem-
se no entanto aqueles que esperam um conjunto de homilias musicadas: este disco
está infectado de pop por todos os tempos e todos os temas, que se ouvem, com sinais
ostensivos de quem sabe como se faz uma canção e como usá-la.
Quem, como eu, assistiu aos rótulos fáceis e injuriosos colocados a um grupo de música
moderna no principio dos anos 80 - sim, os Heróis do Mar e sim, uma das inspirações
confessas de Fúria - sabe como poderia ser tentador arrumar esta arte numa gavetinha
ideológica. Mas felizmente os tempos mudaram e maravilhosamente permitem que a
obra de Fúria se revista de uma contemporaneidade (e a perenidade possível na pop) que
não oferece dúvidas. Manuel Fúria é um incansável fazedor que embora descontente
com o tempo a que pertence exige mostrá-lo com as armas que estes dias lhe dão. A
prova - para além da sua música - está na editora Amor Fúria, que tal como a sua quase
irmã Flor Caveira, sabem como dizer o que querem dizer. E que é muito e é preciso.
Antes de terminar, uma palavra para os músicos que participam no disco, quase todos
eles ligados a outras bandas ou iniciativas em nome próprio. Este é um espírito de
partilha recente na música moderna portuguesa, impensável no dealbar da década
de 80, e que agora surge naturalmente graças a uma nova mentalidade. A saudável
promiscuidade artística que pequenas editoras como a Amor Fúria, Flor Caveira (para ficar por aqui) apresentam são indícios de tempos novos, longe da ideia
paroquial de «o meu talento é único e não o divido com ninguém».
Depois da caminhada que fez com Os Golpes, em que tantas vezes foi reduzido a um
reflexo voluntário de algo que já foi feito, Manuel Fúria precisava de um disco assim.
Onde a sua voz e a sua alma esteja solta como ele gosta: em partilha. Amanhã? Não
sei. Como ele, contento-me com hoje e remeto-me à mesma fonte e origem de todos os
desafios: «Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já
terá as suas preocupações»(Mt, 6, 34).
É urgente alistarmo-nos nesta Revolução da Esperança.
Nuno Miguel Guedes
Concertos dia 22 e 23 de Fevereiro, respectivamente no Ritz Clube em Lisboa e no Plano B no Porto. O disco é o bilhete. Mais informações aqui no sítio da Fnac.
Concertos dia 22 e 23 de Fevereiro, respectivamente no Ritz Clube em Lisboa e no Plano B no Porto. O disco é o bilhete. Mais informações aqui no sítio da Fnac.