terça-feira, dezembro 31, 2013

15 tópicos acerca do meu ano de 2013



1. Editei, em Fevereiro passado, o disco Manuel Fúria Contempla Os Lírios Do Campo, cujas gravações aconteceram entre 2010 e 2013.


2. [à pala desse disco] Fui capa do suplemento Ípsilon e obtive críticas extraordinárias, à excepção da secção musical do Sapo que não gostou. Curiosamente, no final do ano, o disco ficou arredado dos principais topes de melhores do ano. Citando o Vìtor Rua: "O melhor disco do ano é qualquer um que eu edite nesse ano".


3. Dei o meu melhor concerto até à data. Melhor do que qualquer um com os Golpes ou com qualquer outra banda que tenha feito parte. Interpretei, com os Náufragos e muitos amigos convidados, o meu disco preferido dos Heróis do Mar, "Mãe", e algumas canções minhas. Uma noite de proporções bíblicas.

4. Completei 30 anos de idade. A idade do início da vida pública de Cristo.


5. Viajei até Bombaim, Cochim, Goa, Damão, Diu e percebi melhor o que significa ser português. E indiano. E os dois ao mesmo tempo.


6. Estive junto do túmulo de São Francisco Xavier, em Velha Goa, e chorei.


7. Para além dos meus concertos com os Náufragos, participei em concertos da Xungaria do Céu, infra-banda inventada pelo AACC Tiago Guillul, da qual faço parte. Foram concertos-estilo-feira-popular-de-Lisboa: uma excitação!


8. A Catarina e eu casámos. Foi uma semana fabulosa, a do casamento (como as coisas por estes lados têm tendência para ser em grande, a boda adjectivou-se "cigana"). Citando o meu bom amigo José Fortes: "Deus é grande, não dorme e é muito meu amigo".

9. Resolvi voltar à vida universitária e inscrevi-me no curso de Teologia. É de doidos fazer isto nesta altura da minha vida, mas Deus não nos pede coisas que não consigamos concretizar.

10. Não liguei nenhuma a este blogue como se pode verificar pelas 3 ou 4 míseras entradas datadas de 2013.


11. Através da Amor Fúria organizei o último (!) concerto da Feromona. Coisa agri-doce, mas um final em grande. O AACC Tiago Guillul pergunta na Voz do Deserto por que razão uma das melhores bandas de rock no nosso País não sacou do nosso País aquilo que se espera das melhores bandas de rock? Eu respondo: porque Portugal não é do Rock.


12. O  Benfica perdeu tudo mas eu não.


13. Conheci o meu guitarrista preferido de todos os tempos. O Johnny Marr dos Smiths. Falei-lhe dessa preferência entre outras declarações de amor eterno. Deu-me um abraço e a palheta. Perdi a palheta.

14. Recebi a notícia que vou ser pai. E a Catarina mãe. Citando o meu bom amigo José Fortes: "Deus é grande, não dorme e é muito meu amigo".


15. Inventei uma super-banda chamada Exército de Salvação. Aconteceu na sequência do tal concerto da "Mãe" dos HDM. Era um sonho antigo e os ensaios já começaram. Há Samuel Úria, há Rui Pregal da Cunha, há Alexandre Cortez, há Alex d'Alva Teixeira, há outros nomes bem bonitos... 2014 podes tremer que daqui vem milho.

E pronto.






quarta-feira, abril 10, 2013

Acerca de culturas juvenis e da Igreja


Apesar dos cíclicos exercícios revivalistas, que sempre foram artifício próprio da cultura pope, mais ou menos desde a década de 1970, a partir do ano 2000, com a rede global a entrar, triunfal, nas vidas de todos, com o acesso a todas as memórias, todos os arquivos, esta ideia de reviver o que foi paradigma de outros tempos assenta, aparentemente, arraiais mais duradouros, com direito a rótulo e tudo, o prefixo retro

Hoje é dia 5 de Abril de 2013. Há 10 anos atrás corria o ano de 2003, há 20 anos atrás 1993, há 30, 1983. O exercício de perspectiva que poderemos fazer observando o que já passou será relativamente simples à luz desta ideia das culturas, subculturas e outras coisas que tais de índole juvenil e urbana. De 1983 será fácil identificar um panque, um vanguardista, um metaleiro, um beto. Em 1993 as marcas identitárias que definiam a malta da música de dança, os surfistas ou os desmazelados do grunge também se apresentam simples aos olhos que o tempo ensina a acalmar. 

Com certeza que estes dois parágrafos anteriores simplificam muito os movimentos das culturas juvenis urbanas mas dão uma impressão, ainda que superficial, daquilo que vai acontecendo, para chegarmos a este dia novamente, 5 de Abril de 2013. É que hoje os meus olhos estão, aqui e agora, condicionados a esta circunstância e não na distância e calma de um tempo futuro, e hoje não consigo avançar com definições tão precisas quanto as anteriores. Haverá hip hop, haverá roque, haverá hipsters, malta da música de dança, metaleiros e panques, haverá tudo e mais alguma coisa - misturado, remisturado, confuso e desornado tal como o mundo virtual nos ecrãs dos nossos computadores. E mais do que esse mundo virtual ser espelho fragmentado do que acontece na rua, o que acontece na rua é espelho fragmentado do que acontece nesse espaço imune ao tacto ou ao olfacto. Agora é mais difícil avançar com definições, tudo o que aconteceu volta a acontecer, tudo o que não aconteceu acontece e acontecerá. Sim, é confuso. O homem tem essa extraordinária capacidade de complicar e cobrir o essencial com camadas e camadas de vestuário, como uma cebola que em vez de se descascar vai operando em sentido inverso. 

A Igreja, pelo menos a Igreja hierárquica, sempre foi de um tempo ausente, procurando imunidade aos ricochetes do mundo, dirigindo-se sempre para a sua vocação de esposa e corpo de Cristo. Parece-me que a resposta e o desafio é precisamente o cumprimento dessa vocação. Se o  desafio é grande, paradoxalmente, é simples na procura da disponibilidade e do silêncio de Maria contrapondo o voluntarismo de Marta, sob o risco de penar uma infantilização de si própria se escolher as máscaras do mundo para se aproximar destas realidades. Essas máscaras não são precisas para chegar ao íntimo de cada um de nós. Se a Igreja quer chamar a si os jovens (quanto desprezo o paternalismo que esta palavra carrega) terá, não de ir ao seu encontro com os dispositivos mundanos que caracterizam estas culturas, mas com os dispositivos de Deus cumprindo a sua vocação de nudez, simplicidade, pobreza. Será, certamente, necessário compreender estas culturas, tal como São Francisco Xavier compreendeu indianos e japoneses, mas o objectivo primeiro e último é, através de suavidade e firmeza, o entendimento de cada pessoa, única e eternamente amada pelo Pai. 

As culturas juvenis são e sempre foram fascínio pelas coisas do mundo, eu que o diga. Venha a Igreja ao seu encontro, utilizando a linguagem deste tempo, permanecendo na fidelidade à única palavra que São João da Cruz fala neste seu conselho: O Pai Celeste disse uma única palavra: É o Seu Filho. Disse-a enternamente e num eterno silêncio. (...).


Artigo publicado no boletim "Observatório da Cultura", nº 19, uma publicação do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Manuel Fúria Contempla Os Lírios Do Campo


A Revolução da Esperança

Há esta certeza que faz falta proclamar: Manuel Fúria é um subversivo. Melhor ainda: um subversivo com uma missão. Acredita e pratica o que louva - valores e actos que, mais do que anacrónicos, são mal vistos pelo espírito deste tempo. Utiliza sem medo palavras como «pátria», «amor», caridade», «coração», «bondade», «rei», «fé», «rapariga», «noiva», «Cristo», «contemplação», «mistério», «alma». Para ele, tudo se poderia resumir num único vocábulo indizível que tem urgência de partilhar. E essa urgência é a razão de ser da sua arte e da extrema necessidade de fazer.

«Quero ver Lisboa a arder», anuncia ele no início da nova aventura-manifesto que é este disco, Manuel Fúria contempla os lírios do campo. A referência bíblica, para além de assumida, assalta-nos por uma estranha beleza proselitista, apenas porque pressentimos que ele crê sinceramente e isso é tão raro. O que seduz de imediato na arte e na personalidade do Manuel Fúria (e aqui chegados, permiti que o que assina estas linhas se intrometa ainda mais pessoalmente nesta conversa e confesse a sua amizade) é que tanto numa como noutra a verdade não se sobrepõe à sinceridade: valem o mesmo, e são indissociáveis. Outros criadores ou interpretes são genuinamente sinceros no momento em que transmitem sentimentos ou intenções, para depois os abandonarem; Fúria é verdadeiro, de uma forma absolutamente sincera.

Assim, rodeado de cúmplices de excelência que não por acaso se intitulam de Náufragos (na eterna espera, numa eterna deriva, numa angustiante liberdade), Manuel Fúria canta aquilo em que acredita, lamenta o que se perdeu mas reclama a possibilidade da esperança. O que esta colecção de cantigas sugere é uma visão de um mundo límpido e espiritual, onde o essencial é possível, e que esse mundo poderia começar em Portugal. Infelizmente, e como chegou a dizer numa entrevista, « Portugal ainda não é».Esta ontologia de Portugal teria assim de partir de um reino de amor e de festa. Se existem tentações - a cidade como Babilónia é assumida logo em Estandarte e lembrou-me uma das minhas passagens bíblicas preferidas:"Não deixes errar os olhos pelas ruas da cidade nem vagueies por seus lugares solitários" (Sir, 9, 7) - todas serão vencidas pelo Amor e pela Festa (Que Haja Festa Não Sei Onde). Desenganem- se no entanto aqueles que esperam um conjunto de homilias musicadas: este disco está infectado de pop por todos os tempos e todos os temas, que se ouvem, com sinais ostensivos de quem sabe como se faz uma canção e como usá-la.

Quem, como eu, assistiu aos rótulos fáceis e injuriosos colocados a um grupo de música moderna no principio dos anos 80 - sim, os Heróis do Mar e sim, uma das inspirações confessas de Fúria - sabe como poderia ser tentador arrumar esta arte numa gavetinha ideológica. Mas felizmente os tempos mudaram e maravilhosamente permitem que a obra de Fúria se revista de uma contemporaneidade (e a perenidade possível na pop) que não oferece dúvidas. Manuel Fúria é um incansável fazedor que embora descontente com o tempo a que pertence exige mostrá-lo com as armas que estes dias lhe dão. A prova - para além da sua música - está na editora Amor Fúria, que tal como a sua quase irmã Flor Caveira, sabem como dizer o que querem dizer. E que é muito e é preciso.

Antes de terminar, uma palavra para os músicos que participam no disco, quase todos eles ligados a outras bandas ou iniciativas em nome próprio. Este é um espírito de partilha recente na música moderna portuguesa, impensável no dealbar da década de 80, e que agora surge naturalmente graças a uma nova mentalidade. A saudável promiscuidade artística que pequenas editoras como a Amor Fúria, Flor Caveira (para ficar por aqui) apresentam são indícios de tempos novos, longe da ideia paroquial de «o meu talento é único e não o divido com ninguém».  

Depois da caminhada que fez com Os Golpes, em que tantas vezes foi reduzido a um reflexo voluntário de algo que já foi feito, Manuel Fúria precisava de um disco assim. Onde a sua voz e a sua alma esteja solta como ele gosta: em partilha. Amanhã? Não sei. Como ele, contento-me com hoje e remeto-me à mesma fonte e origem de todos os desafios: «Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações»(Mt, 6, 34). É urgente alistarmo-nos nesta Revolução da Esperança.  

Nuno Miguel Guedes

Concertos dia 22 e 23 de Fevereiro, respectivamente no Ritz Clube em Lisboa e no Plano B no Porto. O disco é o bilhete. Mais informações aqui no sítio da Fnac.

sexta-feira, janeiro 25, 2013

"O vento que a acompanha é feliz"

Na próxima segunda-feira dia 28 de Janeiro é editado o primeiro disco de longa-duração que assino com o meu nome. Em 2008 editei o pequeno disco "Manuel Fúria Apresenta As Aventuras do Homem Arranha" e, entre um e outro, ajudei a parir dois discos com Os Golpes, "Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco" e o "G", 2009 e 2011/12.
O meu novo trabalho chama-se "Manuel Fúria Contempla Os Lírios do Campo" e quando defini o fio condutor que orienta esta fantasia escrevi um texto sobre as minhas intenções. Desse texto parafraseio algumas partes que me parecem pertinentes agora:


"Os objectivos desta obra discográfica de longa duração são a promoção de uma cultura pope de raíz portuguesa, apostada na valorização da identificação comunitária, da memória como alavanca fundamental do futuro, na vontade de uma reconciliação e apaziguamento de Portugal consigo próprio."


"Uma lírica que se debruça explicitamente sobre cenários latentes ao colectivo português: os bailes da terra, o bucolismo perdido, a procura de uma identidade que reside, em parte, nesse universo, os lírios do campo (símbolo maior da simplicidade campestre), em última análise uma dramaturgia do desassossego urbano que procura um violento e primordial encontro com a origem primeira da paridade absoluta (como o Jacinto d’A Cidade e As Serras)"

"Manuel Fúria Contempla Os Lírios Do Campo parte da referência explícita ao Sermão da Montanha, porventura o mais importante da Cristandade, aquele que lançou as bases para o código de conduta da civilização judaico-cristã, para fazer uma elegia a um novo e urgente êxodo urbano, em busca de uma espécie de paraíso perdido campestre, deixado à mercê dos caprichos da nossa inconstante e inconsolável memória colectiva."

O que me reservei a não declarar nestas minhas primeiras intenções é que há uma outra canção que atravessa este disco, uma canção que cantei pela primeira vez quando tinha 11 anos e que permaneceu. Intocada, intocável. Chama-se "Os Lírios" e concretiza o seu programa quando é cantada por todos, preferencialmente em roda, de olhos postos uns nos outros ou de cabeça para cima a olhar o céu nocturno. O lugar que se reclama ao longo das 9 cantigas que gravei com os Náufragos será provavelmente esse onde a cantei pela primeira vez. Aquilo que me funda, a minha visão do mundo, os meus sonhos estarão para sempre tingidos pelas cores desses lírios. Depois desse primeiro serão cantei muitas vezes a canção, tantas, incontáveis, que essas palavras tornaram-se parte do meu léxico e do meu imaginário. 
Enquanto compunha a última e mais importante canção deste meu novo disco, convenientemente intitulada "Os Lírios do Campo", os primeiros versos d'"Os Lírios" da minha infância emergiram com a espontaneidade e urgência própria de quem tem coisas para dizer, coisas de verdade, e soube de modo transparente que essa citação mais do que "ficar bem" pertencia àquela nova canção: "O que importa são os lírios, porque os lírios lírios são / Vinde todos e cantemos e cantemos a canção / O que importa são os lírios, porque os lírios lírios são / Vem do alto da montanha, vem do alto a canção". Sempre tomei "Os Lírios" como uma cantiga popular, de autor desconhecido e nessa condição, no livrinho que trará as letras das músicas na próxima segunda-feira, limitei-me a colocar aspas nos ditos versos. 
Esta semana descobri que a canção tem um autor. Chama-se Hélder Ribeiro e foi o inventor desses lugares onde "Os Lírios" se cantam. Este texto serve para mostrar a minha gratidão pela sua obra e sobretudo pelas flores que se encravaram na minha espinha dorsal. É com alegria que me apercebo dos frutos que a inspiração do homem pode fazer nascer, do lastro de terra fértil que podemos deixar no nosso caminho. Gostaria que os depositários da sua memória, sua família e amigos acolhessem estes novos lírios como a homenagem que inequivocamente é. Da minha parte continuarei a fazer justiça aos sábios versos, na música que faço, nos gigantes que projecto, nos degraus que vou subindo um de cada vez, sabendo agora o nome daquele que pela primeira vez os musicou. 
E acabo dizendo o mesmo que o Hélder Ribeiro ousou dizer: "Vinde todos e cantemos a canção."