sexta-feira, janeiro 25, 2013

"O vento que a acompanha é feliz"

Na próxima segunda-feira dia 28 de Janeiro é editado o primeiro disco de longa-duração que assino com o meu nome. Em 2008 editei o pequeno disco "Manuel Fúria Apresenta As Aventuras do Homem Arranha" e, entre um e outro, ajudei a parir dois discos com Os Golpes, "Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco" e o "G", 2009 e 2011/12.
O meu novo trabalho chama-se "Manuel Fúria Contempla Os Lírios do Campo" e quando defini o fio condutor que orienta esta fantasia escrevi um texto sobre as minhas intenções. Desse texto parafraseio algumas partes que me parecem pertinentes agora:


"Os objectivos desta obra discográfica de longa duração são a promoção de uma cultura pope de raíz portuguesa, apostada na valorização da identificação comunitária, da memória como alavanca fundamental do futuro, na vontade de uma reconciliação e apaziguamento de Portugal consigo próprio."


"Uma lírica que se debruça explicitamente sobre cenários latentes ao colectivo português: os bailes da terra, o bucolismo perdido, a procura de uma identidade que reside, em parte, nesse universo, os lírios do campo (símbolo maior da simplicidade campestre), em última análise uma dramaturgia do desassossego urbano que procura um violento e primordial encontro com a origem primeira da paridade absoluta (como o Jacinto d’A Cidade e As Serras)"

"Manuel Fúria Contempla Os Lírios Do Campo parte da referência explícita ao Sermão da Montanha, porventura o mais importante da Cristandade, aquele que lançou as bases para o código de conduta da civilização judaico-cristã, para fazer uma elegia a um novo e urgente êxodo urbano, em busca de uma espécie de paraíso perdido campestre, deixado à mercê dos caprichos da nossa inconstante e inconsolável memória colectiva."

O que me reservei a não declarar nestas minhas primeiras intenções é que há uma outra canção que atravessa este disco, uma canção que cantei pela primeira vez quando tinha 11 anos e que permaneceu. Intocada, intocável. Chama-se "Os Lírios" e concretiza o seu programa quando é cantada por todos, preferencialmente em roda, de olhos postos uns nos outros ou de cabeça para cima a olhar o céu nocturno. O lugar que se reclama ao longo das 9 cantigas que gravei com os Náufragos será provavelmente esse onde a cantei pela primeira vez. Aquilo que me funda, a minha visão do mundo, os meus sonhos estarão para sempre tingidos pelas cores desses lírios. Depois desse primeiro serão cantei muitas vezes a canção, tantas, incontáveis, que essas palavras tornaram-se parte do meu léxico e do meu imaginário. 
Enquanto compunha a última e mais importante canção deste meu novo disco, convenientemente intitulada "Os Lírios do Campo", os primeiros versos d'"Os Lírios" da minha infância emergiram com a espontaneidade e urgência própria de quem tem coisas para dizer, coisas de verdade, e soube de modo transparente que essa citação mais do que "ficar bem" pertencia àquela nova canção: "O que importa são os lírios, porque os lírios lírios são / Vinde todos e cantemos e cantemos a canção / O que importa são os lírios, porque os lírios lírios são / Vem do alto da montanha, vem do alto a canção". Sempre tomei "Os Lírios" como uma cantiga popular, de autor desconhecido e nessa condição, no livrinho que trará as letras das músicas na próxima segunda-feira, limitei-me a colocar aspas nos ditos versos. 
Esta semana descobri que a canção tem um autor. Chama-se Hélder Ribeiro e foi o inventor desses lugares onde "Os Lírios" se cantam. Este texto serve para mostrar a minha gratidão pela sua obra e sobretudo pelas flores que se encravaram na minha espinha dorsal. É com alegria que me apercebo dos frutos que a inspiração do homem pode fazer nascer, do lastro de terra fértil que podemos deixar no nosso caminho. Gostaria que os depositários da sua memória, sua família e amigos acolhessem estes novos lírios como a homenagem que inequivocamente é. Da minha parte continuarei a fazer justiça aos sábios versos, na música que faço, nos gigantes que projecto, nos degraus que vou subindo um de cada vez, sabendo agora o nome daquele que pela primeira vez os musicou. 
E acabo dizendo o mesmo que o Hélder Ribeiro ousou dizer: "Vinde todos e cantemos a canção."