quarta-feira, outubro 31, 2012

A Memória, o Ladrão e o Suporte Básico de Vida segundo o Tiago Pereira

Conheci o Tiago Pereira no myspace - essa moribunda rede social que em tempos de glória foi ponto de encontro e verdadeiro carburante de uma nova e empenhada geração de músicos e afins - através da sua insana actividade diária. Estamos a falar de comentários em tudo o que é perfil de artista e de dezenas de vídeos apresentando exóticas senhoras de idade, remisturadas a versar coisas em português. O Tiago parecia-me um bicho esquisito (coisa que mais tarde, na nossa amizade, confirmei ser verdade), empenhado numa qualquer causa bizarra que não me apetecia muito descobrir. Depois veio a Tradição Oral Contemporânea, em 2008, e, mesmo antes de ver o filme, só pelo título, apurei com mais exactidão a substância da bizarria com que, meia volta, me deparava no myspace. Comecei a admirar o Tiago, por algumas coincidências entre a sua e a minha narrativa e pelo impulso danado e urgente que o estrutura, coisa que comigo também vai sendo assim. Conhecemos-nos entretanto, já não me lembro muito bem como, e foi pelas suas mãos que saiu o mais bonito videograma dos Golpes até à data (número 100 da Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, vão ver, é a canção Embarcadiço). Mais tarde trabalhámos juntos numa encomenda que Guimarães Capital Europeia da Cultura lhe fez, o filme Vamos Tocar Todos Juntos Para Ouvirmos Melhor, um portento visual e sonoro que até à data não tem sido lá muito visto; à parte esse pormenor foram uns dias especialmente brilhantes a interagir musicalmente com a malta da música tradicional do Vale do Ave (lugar em relação ao qual sou bastante afecto). 
Para quem não sabe, a vida do Tiago é essa mesmo, um labor diário, de uma extraordinária intensidade, por esse Portugal a dentro a recolher música. Toda a música. Com especial foco naquilo que vai definhando (falo da música tradicional portuguesa), para depois usar, misturar, remisturar. O Tiago é um arquivista, um intrépido defensor da memória, um resistente (enquanto escrevo este texto está o Tiago a partilhar no facebook o trabalho que está, agora mesmo, a fazer na Terceira). São logo três coisas que prezo com muito, muito valor: Memória, Arquivo, Resistência; e não sou só eu, vão ver o Elogio do Amor do Godard e perceberão melhor aquilo a que me refiro. 
Ontem, quando começava uma viagem Caldas de Vizela-Lisboa, deparo-me com um velho, de boina, à conversa com outro, ligeiramente mais novo, gordo, de bigode e camisolão de lã, encostados a um rail de segurança mesmo antes de uma portagem. A imagem colou-se ao pensamento e foi num ápice que me apercebi "Isto vai morrer". A imagem promove bem esta ideia: o novo e o velho, o progresso a engolir a tradição, etc., etc.. E essa ideia, "Isto vai morrer" atormentou-me especialmente... parece que li ali com as letras todas a certidão de óbito de Portugal. Coisa que intu?i desde há uns bons anos para cá, mas que nunca me tinha surgido tão evidente. Para o Tiago isto tornou-se claro há mais tempo e o seu trabalho é uma verdadeira tentativa de ressuscitação cardiopulmonar do nosso país. É que já nem é a auto-estrada a engolir a paisagem, já não são os incêndios de Verão ou o internacionalismo que domina a generalidade dos portugueses, é mais do que isso, é chegar à conclusão que não há ninguém para prosseguir aquela conversa à porta da auto-estrada. Não há ninguém! O banco de suplentes está vazio e os jogadores vão se retirando a pouco e pouco.
Não sei se sabem o nome de Portugal, mas Portugal não se chama Portugal, chama-se República Portuguesa desde que assassinaram o Rei Dom Carlos. É isto que se passa: vamos sendo roubados, destituídos, alienados. Esta crise representa muito mais do que a perda de coisas seculares (Lençóis amarelecem, gravatas puem, / a barba cresce, cai, os dentes caem, / os braços caem, / (...) as coisas caem, caem, caem, Carlos Drummond de Andrade, Indicações), esta crise traz com ela o anúncio da morte da nossa alma colectiva. Acabou. A eternidade foi chutada para canto. 

Ah, mas onde é que estão / As aldeias todas / Não veio o ladrão / Já não há pessoas? Madredeus, O Ladrão.